
A meditação cristã difere de todos os outros tipos de meditação porque se concentra naquilo que Jesus diz; é a meditação na sua palavra, tal como ela nos é dada nas Escrituras [cf. Dt 6.6]. Meditamos na sua poderosa palavra. A palavra de Jesus tem um impacto sobre nós quando prestamos atenção a ela, faz sua obra em nós quando a ouvimos, e nos transforma interiormente quando permitimos que ela fale. As palavras de Jesus, na verdade, produzem nossa meditação. No entanto, isso não acontece automaticamente, e sim somente quando colocamos nossa confiança nela.
Como cristãos, todos nós já experimentamos o poder da Palavra de Deus em nós como uma palavra de juízo e salvação. O impacto desta palavra sobre nossa consciência é descrito mais vividamente em Hb 4.12-13:
Porque a palavra de Deus é viva, e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração. E não há criatura que não seja manifesta na sua presença; pelo contrário, todas as coisas estão descobertas e patentes aos olhos daquele a quem temos de prestar contas.
Quando meditamos na Palavra de Deus, estamos espiritualmente nus diante de Deus e à sua vista. Sua palavra nos coloca face a face com ele. Essa palavra penetra e expõe os desígnios secretos de nossos corações; ela nos deixa nus diante de Deus e nos considera responsáveis, diante dele, por aquilo que fazemos. Mas, o melhor de tudo, ela faz tudo isso para nos dar vida e realizar sua obra em nós.
Comentário de Lutero
Martinho Lutero explica o poder da meditação na Palavra de Deus de forma memorável em um sermão pregado no Natal de 1519. Nele, Lutero fala sobre a meditação “sacramental” nos Evangelhos e suas histórias a respeito de Jesus:
Todas as palavras e histórias dos evangelhos, são sacramentos de um tipo, sinais sagrados pelo quais Deus opera nos crentes aquilo que as histórias anunciam. Assim como o batismo é o sacramento pelo qual Deus nos restaura, e assim como a absolvição é o sacramento pelo qual Deus perdoa pecados, assim as palavras de Cristo são sacramentos pelo meio dos quais ele opera salvação. Por essa razão, o evangelho deve ser tomado sacramentalmente, isto é, as palavras de Cristo precisam ser meditadas como símbolos por meio dos quais se concede aquilo que as palavras por si mesmas representam: justiça, poder e salvação. Meditamos corretamente no evangelho quando o fazemos sacramentalmente, pois, por meio da fé, as palavras produzem aquilo que elas mesmas descrevem. Cristo nasceu; creia que ele nasceu por você e você nascerá novamente. Cristo venceu a morte e o pecado; creia que ele os venceu por você e você os vencerá. (WA 9.439,442)
Ao falar das palavras de Cristo como sacramentos, Lutero não está usando o termo em seu sentido estrito, mas de forma mais ampla, como uma ratificação divina, um sinal sagrado que transmite aquilo que anuncia. Nem a Palavra de Deus por si mesma nem a fé em si produzem o tipo de meditação que Deus deseja. Antes, meditação é o exercício da fé em Cristo e em sua palavra performativa, pois a fé recebe o que Cristo concede para nós por meio da sua palavra. Nós recebemos quando cremos…
Nosso Guia Espiritual
Lutero, em seu ensino sobre a meditação, destaca esse papel do Espírito Santo como nosso instruidor e guia. Sua premissa básica é de que o mesmo Espírito que inspirou as Escrituras ainda dá vida a elas e também a nós, por meio delas. Por isso ele diz:
Você deve meditar… não somente em seu coração, mas também externamente, repetindo e comparando o discurso oral e as palavras literais do livro, lendo e relendo-as com diligente atenção e reflexão, para que você possa perceber o que o Espírito Santo quer dizer por elas… Pois Deus não dará o seu Espírito a você sem a palavra externa; então tire proveito delas. A ordem de Deus para escrever, pregar, ler, ouvir, cantar, falar, etc. exteriormente não foi dada em vão. (AE 34.286)
Assim, recebemos o Espírito Santo proveniente do Pai ao meditarmos na palavra externa, a palavra que nos vem de fora, a palavra que nos fala a partir das Escrituras. Este entendimento de como o Espírito Santo é dado por meio da Palavra de Deus molda a prática evangélica da meditação. Antes de meditarmos naquilo que está escrito para nós nas Escrituras, fazemos bem em orar e pedir para Deus Pai, por meio do seu querido Filho, que envie o Espírito para nos Guiar, iluminar e capacitar. No entanto, não oramos apenas para que o Espírito Santo dirija a nossa meditação na sua palavra; nós, na verdade, recebemos o Espírito Santo ao meditarmos na palavra. Assim, meditamos na palavra para que o Espírito fale para nós o que Deus Pai tem a nos dizer e conceder por meio do seu Filho.
A Pregação do Espírito
O dom do Espírito Santo fica mais evidente naquilo que Lutero chama de “pregação do Espírito”. Com isso, ele se refere ao fluxo ocasional de inspiração e iluminação, de exultação e capacitação que nos vem ao meditarmos na Palavra de Deus. Não podemos forçar a inspiração; podemos somente recebê-la quando ela acontece. A iluminação é concedida quando prestamos atenção às Escrituras e ficamos profundamente interessados nelas de tal forma que elas falam pessoalmente para nós. Lutero dá esse conselho sobre a iluminação que vem na meditação:
Se tal abundância de bons pensamentos nos vem, devemos… dar espaço a tais pensamentos, ouvir em silêncio e não obstruí-los em em hipótese alguma. O próprio Espírito Santo prega aqui, e uma única palavra do seu sermão é muito melhor que milhares de orações nossas. (AE 43.198)
John W. Kleinig, Grace upon Grace: Spirituality for Today (St. Louis: Concordia, 2008) Bíblia de Estudo da Reforma, Almeida Revista e Atualizada, Sociedade Bíblica do Brasil, Barueri, SP.