Se você pertence a uma igreja reformada com raízes holandesas, provavelmente conhece a Confissão Belga. Foi escrito em 1561 por Guido de Brès, um pastor reformado no sul da Holanda, no que hoje é conhecido como Bélgica. A Confissão Belga é notável porque é a única confissão eclesiástica escrita por um mártir. De Brès foi martirizado pelos governantes espanhóis da Holanda em 31 de maio de 1567. Cerca de seis semanas antes, ele escreveu sua última carta para sua esposa Catarina. É um testemunho comovente não apenas do terno amor de Guido por sua esposa, mas também do evangelho que ele pregou e de seu Salvador Jesus.
Carta de conforto de Guido de Brès para sua esposa
A graça e misericórdia do nosso bom Deus e Pai celestial, e o amor de Seu Filho, nosso Salvador Jesus Cristo, esteja contigo, minha caríssima amada.
Catherine Ramon, minha querida e amada esposa e irmã em nosso Senhor Jesus Cristo: tua angústia e tristeza perturba um tanto a minha alegria e a felicidade do meu coração. Por isso, escrevo isto para consolo de nós dois e, em especial, para teu consolo, visto que sempre me amaste com ardente afeição e porque apraz ao Senhor separar-nos um do outro. Eu sinto mais intensamente o teu sofrimento por essa separação que o meu. Eu te imploro para que não te perturbes demais com isso, por temor de ofender a Deus. Quando casaste comigo, sabias que estavas desposando um marido mortal, com a vida incerta, e, ainda assim, agradou a Deus permitir-nos viver juntos por sete anos, dando-nos cinco filhos. Tivesse o Senhor desejado que vivêssemos juntos por mais tempo, ele teria providenciado os meios. Porém, não lhe agradou fazer isso e que sua vontade seja feita.
Agora, lembra-te de que eu não caí nas mãos dos meus inimigos por mero acaso, mas por meio da providência do meu Deus, que controla e governa todas as coisas, a menor assim como a maior. Isso é demonstrado nas palavras de Cristo: “Não temais. Até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados. Não se vendem cinco pardais por dois asses? E nenhum deles cairá em terra sem o consentimento de vosso Pai. Não temais, pois! Bem mais valeis vós do que muitos pardais.” Essas palavras da divina sabedoria que Deus conhece o número dos meus fios de cabelo. Como, pois, o mal pode vir a mim sem a ordem e a providência de Deus? É por isso que o Profeta diz que não há aflição na cidade que o Senhor não tenha desejado.
Muitos homens santos que vieram antes de nós consolaram-se em suas aflições e tribulações com essa doutrina. José, que fora vendido por seus irmãos e levado ao Egito, diz: “Vocês cometeram um mal, mas Deus o tornou em seu bem. Deus enviou-me ao Egito antes de vocês para seu ganho” (Gênesis 50). Davi também experimentou isso quando Simei o amaldiçoou. E semelhantemente no caso de Jó e muitos outros. E é por isso que os evangelistas escrevem tão cuidadosamente sobre os sofrimentos e a morte do nosso Senhor Jesus Cristo, acrescentando: “Isso aconteceu para que se cumprisse aquilo que foi escrito dEle.” O mesmo deve ser dito sobre todos os membros de Cristo.
É bastante verdadeiro que a razão humana rebela-se contra essa doutrina e a enfrenta o quanto for possível, e eu mesmo tenho uma experiência bastante forte com isso. Quando fui preso, dizia a mim mesmo: “Tantos de nós não deveriam ter viajado juntos. Nós fomos traídos por esse ou por aquele. Não deveríamos ter sido presos.” Com tais pensamentos, tornei-me sobrecarregado, até meu espírito ser reanimado por meio da meditação na providência de Deus. Então, meu coração passou a sentir grande paz. Comecei, então, a dizer: “Meu Deus, tu me fizeste nascer na época em que ordenaste. Durante toda a minha vida, guardaste-me e preservaste-me de grandes perigos, e livraste-me de todos eles – e, se no presente, é chegada a minha hora de passar desta vida para ti, que tua vontade seja feita. Não posso escapar das tuas mãos. E, se eu pudesse, não o faria, visto que é minha felicidade conformar-se à tua vontade.” Esses pensamentos tornaram meu coração novamente alegre.
E eu te suplico, minha querida e fiel companheira, que una-te a mim em gratidão a Deus pelo que ele tem feito. Porque ele não faz algo que não seja justo e mui equânime, e deves crer que é para meu bem e minha paz. Tens visto e sentido as lutas, aflições, perseguições e dores que suportei, e até experimentaste parte delas ao acompanhar-me em minhas viagens durante o período de meu exílio. Agora, meu Deus estendeu sua mão para receber-me em seu bendito reino. Eu o verei antes de ti e, quando agradar ao Senhor, tu me acompanharás. Essa separação não é para sempre. O Senhor também te receberá para unir-nos novamente em nosso cabeça, Jesus Cristo.
Este não é o lugar da nossa habitação – que está no céu. Este é apenas o local da nossa jornada. É por isso que ansiamos por nosso verdadeira pátria, que é o céu. Nós desejamos ser recebidos na casa do nosso Pai Celestial, ver nosso Irmão, Cabeça e Salvador Jesus Cristo, ver a nobre companha dos patriarcas, profetas, apóstolos e muitos milhares de mártires, em cuja companha espero ser recebido quando encerrar o percurso da obra que recebi do meu Senhor Jesus Cristo.
Eu te peço, minha caríssima amada, que te consoles com a meditação nessas coisas. Considera a honra que Deus te atribuiu, ao dar-te um marido que não somente foi um ministro do Filho de Deus, mas era tão estimado por Deus que ele o permitiu possuir a coroa dos mártires. É uma qualidade de honra que Deus jamais concedeu aos anjos.
Eu estou feliz; meu coração está leve e nada falta em minhas aflições. Estou tão cheio da abundância das riquezas do meu Deus que tenho o bastante para mim e todos aqueles com quem posso conversar. Assim, oro ao meu Deus que mantenha sua bondade comigo, seu prisioneiro. Aquele em quem confiei o fará, pois descobri por experiência que ele jamais abandonará aqueles que confiaram nele. Nunca imaginei que Deus pudesse ser tão gentil com uma criatura tão miserável quanto eu. Eu percebo a fidelidade do meu Senhor Jesus Cristo.
Agora, estou praticando o que preguei a outros. E devo confessar que, quando eu pregava, falava sobre as coisas que atualmente experimento como um cego fala das cores. Desde que fui preso, tenho me beneficiado mais e aprendido mais que durante todo o restante da minha vida. Eu estou em uma escola ótima: o Espírito Santo me inspira continuamente e me ensina como usar as armas neste combate. Do outro lado está Satanás, o adversário de todos os filhos de Deus. Ele é como um violento leão que ruge. Ele me rodeia constantemente e procura ferir-me. Todavia, aquele que disse “não temas porque eu venci o mundo” me faz vitorioso. E, desde já, vejo que o Senhor coloca Satanás sob meus pés e sinto o poder de Deus aperfeiçoado em minha fraqueza.
Nosso Senhor me permite, por um lado, sentir minha fraqueza e pequenez, que nada sou senão um pequeno vaso na terra, mui frágil, a fim de que ele me humilhe, para que toda a glória da vitória seja dada a ele. Por outro lado, ele me fortalece e me consola de um modo inacreditável. Eu tenho mais conforto que os inimigos do evangelho. Eu como, bebo, e descanso melhor do que eles. Estou encarcerado em uma prisão muito forte, muito fria, escura e sombria. Por causa de sua escuridão, a prisão é conhecida pelo nome de “Brunain” [Brownie]. O ar é terrível e ela fede. Em meus pés e mãos, tenho grilhões, grandes e pesados. Eles são um inferno contínuo, escavando meus membros até meus miseráveis ossos. O comandante vem examinar meus grilhões duas ou três vezes ao dia, temendo que eu escape. Há três guardas de quarenta homens em frente à porta da prisão.
Eu também recebo visitas do Monsieur de Hamaide. Diz ele que vem para ver-me, consolar-me e exortar-me à paciência. Entretanto, ele vem após o jantar, depois de ter vinho na cabeça e o estômago cheio. Você pode imaginar o que são essas consolações. Ele me ameaça e diz que se eu demonstrasse qualquer intenção de escapar, ele teria me acorrentado pelo pescoço, o tronco e as pernas, para que eu não pudesse mover um dedo; e ele diz muitas outras coisas nesse sentido. Mas, apesar de tudo, meu Deus não retirou suas promessas, consolando meu coração, concedendo-me muito contentamento.
Porque tais coisas aconteceram, minha querida irmã e fiel esposa, eu te imploro que, em tuas aflições, encontres conforto no Senhor e entregue teus problemas a ele. Ele é o marido das viúvas crentes e pai dos órfãos pobres. Ele jamais te abandonará – disso posso te assegurar. Conduza-te como uma mulher cristã, fiel no temor do Senhor, como sempre o fizeste, honrando por meio de uma vida e conversas excelentes a doutrina do Filho de Deus, que teu marido pregou.
Como sempre me amaste com grande afeição, peço que mantenhas esse amor com relação aos nossos filhinhos, instruindo-lhes no conhecimento do verdadeiro Deus e de seu Filho Jesus Cristo. Seja pai e mãe deles, e cuida para que eles usem com honestidade o pouco que Deus te deu. Se Deus te conceder o favor de permitir que, após minha morte, vivas na viuvez com nossos filhos, tudo ficará bem. Se não puderes, e os bens faltarem, então encontre algum homem bom, fiel e temente a Deus. E, quando eu puder, escreverei aos nossos amigos para que te protejam. Penso que eles não te deixarão em necessidade de qualquer coisa. Retorna à tua rotina habitual depois que o Senhor tiver me levado. Tens contigo nossa filha Sarah, que logo será crescida. Ela será tua companheira e te auxiliará em teus problemas. Ela te consolará nas tribulações e o Senhor sempre estará contigo. Saúda nossos bons amigos em meu nome, e peça que orem a Deus por mim, para que ele me dê força, articulação e a sabedoria e capacidade de preservar a verdade do Filho de Deus até o fim e o último fôlego da minha vida.
Adeus, Catherine, minha querida amada. Eu oro a meu Deus para que te conforte e conceda contentamento segundo sua boa vontade. Eu espero que Deus tenha me dado a graça de escrever para teu benefício, de tal forma que sejas consolada neste mundo miserável. Guarda minha carta como lembrança de mim. Está mal escrita, mas é o que posso, não o que desejo, fazer. Recomenda-me à minha boa mãe. Eu espero escrever algum consolo a ela, se agradar a Deus. Saúda também minha boa irmã. Que ela possa entregar sua aflição a Deus. A graça esteja contigo.
Da prisão, 12 de abril de 1567.
Teu fiel marido, Guido de Brès, ministro da Palavra de Deus em Valenciennes, e presentemente prisioneiro pelo Filho de Deus no local supracitado.
Ele foi enforcado em 31 de maio de 1567.
Fonte:
https://ia800901.us.archive.org/30/items/UmMartirDaReformaConfortaSuaEsposa/Um%20M%C3%A1rtir%20da%20Reforma%20Conforta%20Sua%20Esposa.pdf